Entrevista com Alice Cunha da Silva, engenheira nuclear

Publicado em: 04/11/2019 Escola Politécnica da UFRJ
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Quem não a conhecia e participou da VII Semana de Energia Nuclear (SEN) da Escola Politécnica da UFRJ, em meados de setembro, provavelmente se impressionou com a desenvoltura de Alice Cunha da Silva, 29 anos. Engenheira nuclear formada na Poli-UFRJ, ela falou na sessão de abertura da SEN sobre oportunidades e desafios do mercado e em painéis sobre a presença da mulher no setor nuclear e sobre os reatores do futuro.  Mais impressionante, porém, é a trajetória acadêmica e profissional da jovem filha de uma técnica de enfermagem e de um auxiliar administrativo, criada em Santíssimo, Zona Oeste do Rio de Janeiro, que costumava levar mais de duas horas para chegar ao campus da universidade.

Alice começou a graduação em 2011 e já no primeiro ano conseguiu um estágio no OakRidgeNationalLaboratory, programa de ciência e tecnologia do governo americano. Em 2015, pouco antes de concluir o curso, foi a primeira brasileira a vencer uma Olimpíada Mundial Nuclear, em Viena, na Áustria. Muito ativa durante o curso, ela participou da organização de várias edições da SEN e da criação de uma divisão estudantil da seção latino-americana da American Nuclear Society.

Participou também do programa Ciências Sem Fronteiras e passou um ano na Penn StateUniversity, na Pensilvânia, EUA. Durante o intercâmbio, estagiou na Westinghouse e, ao retornar ao Brasil, estagiou também no escritório que a empresa acabara de abrir no Rio de Janeiro. Concluída a graduação em 2016, foi contratada.  Paralelamente à rotina de engenheira nuclear, ela concluiu o MBA em Gestão e Gerenciamento de Projetos do Núcleo de Pesquisas em Planejamento e Gestão (NPPG) da Poli-UFRJ e está finalizando dissertação de mestrado em Administração na Universidade de Bordeaux, num programa de continuidade e complementação curricular, acertado entre a Poli-UFRJ e instituições de ensino francesas.

Além disso, ela integra a diretoria da Associação Brasileira de Energia Nuclear (ABEN), faz parte do comitê executivo da Women in Nuclear, que tem como um dos objetivos estimular a participação de mulheres na área nuclear, além de outras diversas organizações. Na entrevista a seguir, Alice conta mais sobre sua trajetória e fala dos desafios e oportunidades da Engenharia Nuclear no Brasil.

Como você se interessou pela Engenharia Nuclear?
Escolhi Engenharia porque sempre tive paixão pela área das ciências exatas. Fiz o curso técnico em Informática no CEFET. Achava que queria ser programadora, mas percebi que tinha que fazer algo na Engenharia, quando entendi que significava utilizar os conceitos da ciência e aplicar em benefício da sociedade. Eu vi a Engenharia como meu futuro de carreira. Na época ainda não sabia que queria a Nuclear. Descobri quando fazia meu estágio técnico. Eu faziahelp desk e manutenção de computadores numa empresa do setor nuclear que tinha funcionários que trabalhavam nos escritórios ao redor da Usina Nuclear do Brasil, lá em Angra dos Reis. Ficava curiosa com aquele prédio que eu nem sabia o que era. Já tinha decidido pela Engenharia e próximo ao vestibular soube que a UFRJ tinha acabado de criar o curso de graduação em Eng. Nuclear. Resolvi colocar como minha primeira opção para descobrir o que seria. Entrei na UFRJ e já na primeira semana comecei a me encantar com a área.


O que a encantou exatamente?
A tecnologia nuclear é muito abrangente, tem aplicações em todas as áreas da vida do ser humano e há muito desconhecimento em relação a isso. As pessoas não sabem da quantidade de aplicações na área de Medicina que têm salvado a vida de pessoas, de como a produção de energia nuclear é limpa e que alguns países têm usado como parte da solução para problemas de saúde pública para diminuir a poluição do ar. A China e até a província de Ontário, no Canadá, por exemplo, investiram nessa tecnologia também para redução da poluição do ar. A tecnologia nuclear tem aplicações no espaço, tem aplicação na irradiação do sangue, de alimentos para aumentar seu tempo de prateleira, de equipamentos médicos para esterilização e até em obras de arte para conservação.

E como foi participar e vencer a Olimpíada Mundial Nuclear 2015?
Foi uma experiência muito gratificante. Um dos objetivos desta olimpíada é divulgar os benefícios da energia nuclear para o mundo. Cada etapa valia pontos e a inscrição consistia no envio de um vídeo de até 60 segundos. Mesmo sem nenhuma habilidade em edição de vídeo, produzi o material e divulguei em jornais, internet e até em programas de rádio. As etapas seguintes exigiam carta de recomendação e envio de um estudo sobre produção de radiofármacos, que são elementos radioativos utilizados na Medicina para o diagnóstico e tratamento de doenças, como o câncer. O trabalho final foi apresentado em Viena, na Áustria. Competi com estudantes de diversos locais do mundo e na final, com outros quatro finalistas, era a única representante das Américas e única mulher. Na edição da olimpíada deste ano, participei do processo de elaboração e também fui jurada em algumas etapas.

Você fez uma apresentação na SEN num painel sobre mulher e mercado e faz parte de organizações para estimular a participação feminina na Engenharia Nuclear. Enfrentou ou enfrenta preconceitos no dia a dia?
Quando eu entrei na faculdade de Engenharia Nuclear, na minha turma erámos 25 alunos, dos quais três mulheres. Atualmente são 144 estudantes no curso todo e 23 são mulheres. Um número ainda muito reduzido. Dificuldades como profissional eu passei e ainda passo muitas vezes, como por exemplo entrar em uma reunião com o meu chefe e acharem que eu sou secretária dele. Isso já aconteceu. Ainda escuto que não tenho cara de engenheira, mas nunca me deixei abalar por esses comentários. Eu não posso deixar de pensar que eu tenho um lugar, sim, numa carreira de Ciência e Tecnologia.

Eu falo bastante em diversos eventos sobre o papel da mulher na ciência, que ainda é muito reduzido.  Em números, vemos uma maioria de mulheres na graduação, quando se leva em consideração todos os cursos, é claro, e quando você olha os números de mulheres em categorias altas na pesquisa, por exemplo, o número é extremamente reduzido. Na Engenharia ainda é muito difícil. Como engenheira nuclear trabalhando nesse ramo, desde antes da minha formação, vejo um número reduzido de mulheres chegando a posições mais altas e de liderança.

Há pesquisas que comprovam que a criança aos 6 anos começa a ter inconscientemente essa divisão do que é carreira de mulher e de homem. Então é um trabalho que tem que começar lá atrás para interromper essa visão de que existe diferença.  E, além disso, existe a necessidade de um trabalho para estimular e ajudar as mulheres a crescerem em suas carreiras, porque ainda existe preconceito e resistência em dar uma posição de liderança a quem tem possibilidade de tirar uma licença maternidade. Isso é geral, não falo especificamente do setor nuclear. Então, tem que ter um trabalho de incentivo ao empoderamento, para que elas não desistam dessa possibilidade porque não se veem representadas lá, de igualdade salarial, e contra atitudes preconceituosas no mercado de trabalho

Desde o início da graduação você foi muito atuante. Foi algo planejado?
Foi natural. Como eu não sabia exatamente o que seria a formação, tomei a iniciativa de questionar muito. Como ficaria na faculdade cinco anos, no mínimo, para me formar, eu queria saber logo o que que era aquilo que eu não conhecia. Na segunda semana de aula eu já tinha vaga num laboratório.  Também logo no início conversei com um palestrante que trabalhava em um laboratório americano e foi à universidade sobre um estágio fora do país. Essas iniciativas resultaram, logo no primeiro ano, em uma bolsa de Iniciação Científica e, na sequência, em um estágio no Tennessee, no OakRidgeNationalLaboratory. Foi um grande esforço conseguir e contei com ajuda do professor Luiz Leal, que era pesquisador nesse laboratório, em especial porque o estágio teria de ser janeiro e fevereiro que não é período de estágio lá. Depois continuei muito atuante até o fim do curso, realizei muitas visitas técnicas, participei e organizei eventos com os outros estudantes, fiz intercâmbio.

Mas o comportamento atuante não era apenas característica minha. De modo geral os estudantes da Engenharia Nuclear, principalmente os dos primeiros anos do curso criado em 2010, foram muito atuantes, e acredito que os atuais também são. Como era um curso novo, havia muito a ser desenvolvido e os estudantes tomavam a frente e tentavam participar do processo porque isso trazia crescimento para o curso que estávamos fazendo. Então, eu e os outros estudantes tivemos sempre a iniciativa de tentar trazer coisas novas, que iriam nos beneficiar dentro da UFRJ. Criamos, por exemplo, uma seção estudantil da Engenharia Nuclear que é a primeira da América Latina

O que você pode dizer para estudantes a partir da sua experiência na graduação?
Que é importante se dedicar, aproveitar as oportunidades e criá-las também. É procurar o “sim”, porque o “não” já temos. Eu usava muito esse slogan e também “quem não é visto, não é lembrado”. Participar de diferentes eventos, porque isso ajuda no networking com o setor. Meu contato com a empresa que eu trabalho hoje começou quando eu pedia patrocínio para a Semana da Engenharia Nuclear. Na universidade tive a oportunidade de conquistar coisas que não pareciam possíveis na minha família. Tentei aproveitar todas essas oportunidades e, quando não havia, tentava criar as minhas próprias oportunidades. Recebi diversos “nãos”. Até hoje eu recebo – de cursos, projetos, congressos e outros. Mas o fato de estar sempre tentando aumentou minha chance de receber alguns “sim” que foram marcantes e transformaram realmente a minha vida.

Você passou otimismo na mesa de abertura da SEN sobre as oportunidades do setor nuclear. Por favor, fale resumidamente sobre o que pensa em relação aos desafios e perspectivas do setor.
Vemos algumas decisões que o governo tem tomado para expansão do setor. Temos ouvido que o Plano Nacional de Energia, o planejamento energético feito pelo Ministério de Energia e que vai ser um plano até 2050, vai prever a expansão de usinas no país. Fora isso, existe a forte iniciativa de finalizar Angra 3, que está com a construção civil parada, e outras projetos e discussões até mesmo em áreas como mineração e radiofarmácia. Há projetos muito importantes em andamento, que apesar de atrasados em relação ao plano inicial,  serão importantes para o Brasil, como o Reator Multipropósito Brasileiro, que vai produzir radiofármacos que o Brasil hoje importa em grande quantidade. São perspectivas positivas para o setor. Quanto aos desafios, na minha opinião, um dos maiores ainda é a necessidade de mais investimentos. Estamos numa situação de contingenciamento e de muitos cortes, mas há necessidade de o governo contratar mais pessoal, por exemplo.  O setor nuclear ainda tem uma característica dos seus profissionais serem bem sêniores, então há necessidade de trazer novos profissionais, como os que a Poli-UFRJ está formando. Enfim, existem muitos desafios, muitas questões a serem tratadas, mas há essa visão positiva da iniciativa de expansão do setor, e da tomada de decisões que estavam pendentes em outros tempos e que agora vemos seguindo em frente.